CHEGADAS E PARTIDAS
Chegadas e partidas
é um filme para poucos e, ao mesmo tempo, um filme de todos nós, porque toca -
de maneira sutil ou agressiva – a vida humana em suas tantas peculiaridades e
facetas.
Quando digo que é um filme para poucos não quero com isso
restringir o público e afirmar que apenas alguns poucos privilegiados podem
assisti-lo. Não é isso! A intenção nem poderia ser essa, uma vez que os fatos
que compõem o enredo ou roteiro tratam de situações que todos, sem exceção, já
vivenciaram ao menos uma vez na vida em proporções diferentes. Não obstante
tratar de situações cotidianas com a quais nos identificamos, é preciso ter um
olhar que não recaia apenas na superfície dos fatos retratados, na seqüência
das ações, na fotografia que deslumbra uma após outra ou nas contradições, por
vezes engraçadas, que fazem a vida de Quoyle (Kevin Spacey). A beleza do filme
não reside apenas aí, de modo que é preciso assisti-lo como se vasculhássemos
nas entrelinhas ou entrecenas os sentidos que não se entregam de imediato,
aqueles que não se dão aos olhares entretidos, curiosos, desatentos.
Quoyle é um homem que recebeu uma educação rígida que minou
sua auto-estima. Descrente de si mesmo e das próprias potencialidades é lançado
num mundo que categoriza, seleciona e exclui aqueles que não correspondem às
exigências que se impõem; ou seja, um mundo “onde os fracos não têm vez.” É
constantemente posto à prova por esse mundo e suas parcas capacidades são
esmagadas pela hostilidade desse arranjo social que já o esperava antes que
nascesse.
Numa situação inusitada, Quoyle conhece aquela que será sua
esposa (Cate Blanchett) e que não tem com ele uma relação de respeito e
fidelidade. Ela morre num acidente de carro quando tenta seqüestrar a própria
filha para vender para traficantes de órgãos humanos. Agora, Quoyle não é
responsável apenas por sua vida, mas também pela filha que escapou à tentativa
de seqüestro e voltou para casa.
Entre os cuidados com a filha, a casa e as diligências do
trabalho, Quoyle recebe a visita de uma tia (Jude Dench) que resolve levá-lo à
terra dos seus antepassados. Lá, a partir do encontro com a história dos seus
antepassados, da convivência com as pessoas da comunidade de Newfoundland, do
novo relacionamento com a misteriosa Wavey (Julianne Moore) e do emprego que
possibilita acordar potenciais adormecidos, a vida de Quoyle muda para sempre.
Disso, temos que não foi evitando a vida que Quoyle
conseguiu sarar as cicatrizes da infância deixadas por um educação que o
desqualificava; antes, foi no encontro consigo a partir do encontro com o outro
e com a própria história que foi possível superar seu maior medo: ele mesmo.
Nessa obra, de grande beleza humana e cinematográfica, o
diretor Lasse Hallström supera-se mais uma vez.