Uma definição

"O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho." (Orson Welles)

domingo, 13 de julho de 2014

Salò, ou os 120 Dias de Sodoma

Antes de comentar Salò, ou os 120 Dias de Sodoma, penso que vale a pena dedicar algumas linhas ao seu diretor, o italiano Pier Paolo Pasolini. Partindo de uma cronologia descendente, Salò foi o último filme do renomado diretor italiano que ficou conhecido por sua filmografia crítica, engajada e revestida de posições contrárias aos valores da sociedade vigente. Na lista de filmes que trazem sua assinatura, a sexualidade, em suas várias facetas, será usada como metáfora para falar da moralidade, das relações de poder, política e valores religiosos e sociais. Considerado, por alguns, como pevertido, polêmico, devastador dos costumes morais e devasso, Pasolini era, sobretudo, um observador atento e crítico das mudanças ocorridas durante os primeiros anos do séc. XX. Vivendo sob o peso de uma sociedade que discrimina todo tipo de minoria e diferenças em todos os âmbitos da vida social, Pasolini tem no cinema uma ferramenta capaz de transformar sua visão de mundo em imagem e som. Infelizmente, o diretor italiano não pode ver a estreia de Salò, uma vez que foi encontrado morto numa praia. Ainda hoje sua morte está envolta em mistério, mas há quem afirme que foi assassinado por um garoto de programa que passou várias vezes sobre seu corpo vulnerável com um carro.
É no contexto dos regimes totalitários que grassam na Europa do séc. XX que Pasolini produz essa obra considerada a mais polêmica da história pelo Time Out e um dos 100 filmes essenciais para você assistir antes de morrer pelo Festival de Cinema de Toronto.
O filme foi lançado em 1975 e conta a história de cinco libertinos que resolvem sequestrar 16 jovens (8 rapazes e 8 moças) e confiná-los num castelo onde serão submetidos a toda sorte de sodomia enquanto escutam narrativas contadas por mulheres acerca das suas experiências sexuais. A película é baseada no livro Os 120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem do Marquês de Sade, escritor francês. Além dos 16 jovens, foram levados ao castelo 8 garanhões, 4 narradoras, 4 putas, 4 criadas, 6 cozinheiras e suas 4 filhas.
No château Silling, as histórias são narradas a fim de fazer aflorar os mais diversos instintos sexuais e seguidas de práticas e performances que desafiam o equilíbrio emocional, espiritual e moral daqueles jovens que são obrigados à práticas de perversão que chegam a comprometer a sanidade mental de pessoas que mal haviam iniciado uma vida sexual. A justificativa dessas práticas sai da boca do Magistrado quando diz que "Não há nada tão glorificante como o mal." O mal pelo mal, o mal por prazer, o mal por puro hedonismo, o mal como forma de impor e controlar. Assim, a partir de experiências particulares ou coletivas, Pasolini intenta a universalização de toda aquela simbologia que desfila na película e que traduz o poder e seu uso desprovido de qualquer ética.
A sequência de atos violentos e sádicos é parametrizada por normas que os jovens devem obedecer cegamente sob pena de serem castigados. Caso haja alguma infração, seus nomes são incluídos num caderno e punidos. As punições são as mais horrendas já vistas na história do cinema: olhos arrancados à faca, testículos e pênis cortados, queimaduras, língua cortada. Diante disso, o espectador, além das náuseas, pergunta-se: "É justo?" O Duque, um dos libertinos, responde: "Se fosse justo não nos deixaria de pau duro." É isso mesmo que Pasolini deseja colocar em xeque: a justiça e bondade humanas. Isso não significa que não acredite que o ser humano seja capaz de ser bom e justo, mas que essas virtudes estão sempre ameaçadas pelo poder que desvirtua o humano quando não sabemos lidar com ele. Sobre isso, um outro libertino afirma: "Tudo é bom em excesso." O poder, esse estranho objeto de desejo, quando usado sem discernimento e ponderação pode desembocar no excesso e se tornar prejudicial.
O filme termina quando um dos jovens põe uma música e pergunta se o outro sabe dançar. Em meio às barbaridades que se desenrolam durante o Ciclo do Sangue (vale salientar que o filme é dividido em Ciclo das Manias, Ciclo da Merda e Ciclo do Sangue tal como encontramos no livro de Sade), eles dançam. Isso permite entender que sempre há uma brecha pela qual o ser humano pode escapar às opressões fascistas e totalitárias e se singularizar como humano, embora o Sistema diga outra coisa: “Sua criaturas fracas! Ralé, destinada ao nosso prazer. Não esperem aqui a liberdade garantida lá fora. Vocês aqui estão além de qualquer lei. Ninguém sabe que estão aqui. Pelo que importa ao mundo, já estão mortos.”  ou “Nós, fascistas, somos os únicos verdadeiros anarquistas” (O Duque).