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“Perto de alguns sonhos, nada real tem tanta intensidade”. Dita em determinado momento de Providence
por Claude Longhan (Dirk Bogarde) essa fala talvez sintetize algumas
das questões propostas por essa obra-prima um tanto esquecida de Alain
Resnais: até que ponto os sonhos são capazes de revelar o real? Não
seriam os sonhos por vezes mais eficientes em explicitar aspectos da
realidade que a própria realidade? Posições claramente controversas, mas
nunca desinteressantes.
Deve-se, em primeiro lugar, ressaltar o fato de que a dimensão onírica não é uma novidade no cinema que Resnais desenvolve em Providence. Ela já está presente em seus dois primeiros filmes de ficção, os aclamados Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima, Mon Amour, 1959) e O Ano Passado em Marienbad (L’Annèe Dernier en Marienbad, 1961), e também, não por mero acaso, em seu trabalho mais recente, As Ervas Daninhas (Les Herbes Folles, 2009). Em Providence, entretanto, esse caráter recorrente do cinema de Resnais é explicitado, ganhando alguns contornos específicos.
Numa primeira parte do filme, dois movimentos e tons se intercalam.
De um lado, quatro personagens formam um improvável quadrado de
relações. Claude (Bogarde) é o arrogante e histriônico promotor do caso
em que Kevin Woodford (David Warner) é acusado de matar um velho. Sonia
(Ellen Burstyn), esposa infeliz de Claude, parece querer a todo o
momento trair o marido com Woodford, que se mostra ao longo dessa
primeira parte do filme como alguém completamente apático, distante e
pouco interessado ao que ocorre a sua volta. Por fim, Helen (Elaine
Stritch), também tratada em certos momentos por Molly, mulher que já
passou da meia-idade, apresentada como amante de Claude. Intercalando-se
com esse quadro de relações, acompanhamos a difícil noite regada à
bebida, dores e remédios de Clive Longhan (John Gielgud), escritor que
logo deduzimos ser o pai de Claude e que interfere como uma espécie de
comentarista, pontuando, ironizando, criticando e, muitas vezes,
determinando as ações dos demais personagens, principalmente de Claude.
Ao contrário dessa primeira parte do filme, ora delirante, ora
sombria, quase sempre sem um sentido aparente e com personagens que
beiram a caricatura, a segunda surge com uma feição mais realista,
embora ainda um tanto onírica. Há nesses momentos finais do filme,
principalmente nos planos que abrem essa espécie de epílogo de
Providence, um tom bucólico, que vai se dissipando conforme as tensões
existentes entre os personagens que se reúnem para uma festa vão se
explicitando. Os protagonistas desse embate latente são as figuras
centrais da primeira parte do filme: Clive e Claude, pai e filho.
Pelo já dito, é possível afirmar aqui que Providence permite uma
abordagem claramente psicanalítica, já que Claude é representado como
uma espécie de Édipo que deseja matar o pai e fazer sexo com a mãe, que,
ficaremos sabendo, é Helen/Molly. Não vamos, entretanto, trilhar esse
caminho, até por falta de competência para tanto. Interessa-nos aqui,
por outro lado, a construção do filme, formado por essas duas partes com
tons e mise-en-scène muito distintas.
Em primeiro lugar, parece importante dizer que essa segunda parte do
filme, que se constrói a partir de pressupostos mais próximos de um
certo realismo ainda que, como já dissemos, não abandone de todo o tom
onírico, esclarece e explicita algumas relações que não são tão óbvias
na primeira parte. O caráter impressionista de alguns planos, o
comedimento das atuações e o não-dito do roteiro e da encenação
completam o quadro desse último ato de Providence. É possível
afirmar que esses momentos finais do filme se caracterizam
principalmente pelo latente, pelo implícito, por aquilo que não é capaz
de revelar todas as tensões existentes naquele círculo familiar. A
atuação de Dirk Bogarde é aqui exemplar. É possível perceber
contrariedades, mágoas e tensões menos em suas falas que em um meneio de
sua cabeça ou em um olhar.
Em outro sentido, a atuação de Bogarde na parte inicial do filme
também pode revelar algo sobre ela. Histriônico, sempre gesticulando e
extremamente caricato, não cansa de revelar seu egoísmo e seu profundo
desprezo pelo pai. O exagero dos gestos e a fala empolada não combinam
com o que vemos no último ato do filme, embora certamente revelem
ricamente o personagem ou, pelo menos, a visão que Clive, seu pai, tem
dele. Não é arriscado dizer que se a segunda parte do filme, calcada em
uma pretensa realidade, não revela tudo, destacando apenas os trincos
existentes na superfície (para usar uma imagem do filme), a primeira,
cuja regra é o delírio, o pesadelo e, mais especificamente, o
imaginário, é capaz de explicitar, em grande medida, as tensões que se
escondem em meio ao verniz de civilidade dos personagens. Isso não quer
dizer, entretanto, que o sonho possa substituir a realidade, até porque
um é capaz de revelar o que a outra deixa escondido e vice-e-versa, mas,
por outro lado, o imaginário se mostra capaz sim de explicitar
conflitos que com mais dificuldade se apresentam a olho nu.
Nesse grande filme sobre as interconexões entre o sonho e a
realidade, os grandes temas de Alain Resnais não ficam de fora. O
delírio noturno de Clive parece o canto do cisne de alguém cujo passado
parece um grande fardo a carregar, repleto de culpas e coisas mal
resolvidas. O tempo que corre, a memória que fica e a morte que se
aproxima, mais até que seu filho Claude, são os seus juízes. É o que o
sonho e a realidade de Providence podem revelar ao espectador que deve voltar urgentemente a esse filme.
(Texto publicado na revista eletrônica Cinefilia.net)
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